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Neide Santos transformou a dor da perda em projeto social.

VANESSA FAJARDO
COLABORAÇÃO PARA ECOA, DE SÃO PAULO (SP)

“Era aluna de uma escola estadual e estávamos no meio de um campeonato escolar, faltou uma menina para compor a equipe do revezamento 4×100 no atletismo. O professor me convidou para participar, pois disse que eu era ágil. Era muito magrela e ele ainda brincou: ‘qualquer coisa o vento te leva.’ Ele me entregou o bastão, eu segurei e corri com toda a força que tinha. Praticamente voei mesmo, fiz o melhor pace [tempo]. Era novembro de 1974, desde então, nunca mais parei de correr.

Quando estou correndo me sinto livre, liberta de tudo, é como se não existissem problemas. A corrida é meu mundo perfeito, me alimenta, me sustenta, me deu amigos e família. Na hora que eu corro eu converso com Deus e converso com Mark [filho assassinado aos 21 anos]. Não tem um dia em que eu não me lembre dele, o luto é para sempre.

Penso na minha mãe que precisou se prostituir para sobreviver, nos meus filhos, meus sete netos, minha bisneta. Quero conspirar para fazer um mundo melhor para todos nós. Quando corro, penso em tudo isso.

Meus melhores projetos, iniciativas e ideias aparecem quando estou correndo. Já fiz até reunião correndo, foi assim também com meu ‘anjo bom’ [um patrocinador anônimo]. Foi ele quem me deu suporte financeiro para que pudesse me dedicar somente ao Vida Corrida. Hoje não trabalho mais, só me divirto.”

Lutos e reencontros
Prepare o seu coração/ Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão/ Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão/ E posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não/ Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo/ E a morte, o destino, tudo
Estava fora do lugar/ E eu vivo pra consertar

Esse trecho da música “Disparada”, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, foi cantado por Neide Santos, 61, na abertura de uma de suas palestras. Era estratégia para chamar atenção de uma plateia jovem com os olhos grudados no celular. E deu certo. Não houve quem não prestasse atenção enquanto ela contava sobre sua vida refletida na canção.

Descendente de indígenas pataxós, Neide nasceu na cidade de Prado, na Bahia, pelas mãos de uma parteira. Ainda quando era muito pequena, seu pai foi “dado como morto” ao sair “em busca de ouro”, e sua mãe se viu sem condições de criá-la junto com seus dois irmãos, por isso os entregou para adoção. Aos 6 anos, Neide mudou-se para São Paulo com uma família que a adotou. Morou em uma oficina de costura e sofreu maus tratos e abusos. Teve todos os direitos de sua infância negados, inclusive o de estudar.

“Ameaçavam me mandar para a rua, diziam que minha mãe era prostituta, que eu seria igual a ela. Tinha medo, por isso fazia o que pediam e engolia o choro. O poder público me tirou dessa casa. Fui para outra família e vim para o Capão Redondo.”

Em janeiro de 1977, Neide conseguiu reencontrar a mãe e os irmãos no Capão Redondo. Precisou, então, dedicar-se a cuidar da família – a mãe, Lidia, é viva, tem 85 anos e hoje mora com Neide.

Casou-se em 1978 e teve Mark, seu primeiro filho. O marido foi assassinado no bairro dois anos depois. Sua maior dor, no entanto, viria a sentir em 2000 quando o filho primogênito, na época com 21 anos, foi morto a tiros por um adolescente de 14 anos.

A morte de Mark trouxe muita revolta para Neide, que diz ter encontrado forças para seguir em frente no espiritismo e nos outros dois filhos – Marcelo e Lídia, fruto do segundo casamento.

André Porto/UOL

Asas nos pés e perdão no coração
O projeto Vida Corrida já tinha dado os primeiros passos em 1999, quando Neide passou a treinar mulheres do bairro interessadas em correr. Após aparecer em uma reportagem na TV, na década de 90, durante uma edição da corrida de São Silvestre, ela angariou adeptas como Maria Gonçalves, uma das vizinhas, com 60 anos na época. Até então, elas eram conhecidas como as corredoras do Parque Santo Dias.

“As pessoas olhavam e pensavam: se essa velhinha corre com essa maluquinha por que a gente não pode correr? Na década de 90, só existiam os jogadores de futebol e uma academia de musculação no bairro. O projeto nasceu da necessidade”, lembra.

A perda do filho fez a corredora entender que violência se combate com oportunidades, e por isso ela decidiu expandir o projeto também às crianças do Capão Redondo. “O menino que apertou o gatilho também tem uma mãe que o ama, hoje ele é um pai de família. Que mulher seria eu se só o julgasse? Acho que se ele tivesse oportunidade de participar de um projeto social, talvez não fizesse isso. Com o que tinha para oferecer, meus pés que sempre aprenderam a correr a vida inteira e meu coração cheio de amor e perdão, criei o Vida Corrida.”

O projeto atende atualmente 400 mulheres e 400 crianças, com atividades esportivas de segunda a sexta-feira, na Rua do Engenho, no Capão. Ao todo, mais de 4 mil pessoas foram beneficiadas pela iniciativa de Neide, que gosta de ser chamada de Forrest Neide, em alusão ao filme “Forrest Gump”.

André Porto/UOL

Ouro paralímpico e reconhecimento em NY
Por dez anos, o Vida Corrida foi sustentado por Neide que trabalhava com costura, ofício em que aprendeu na infância. O primeiro grande aporte financeiro chegou em 2009 com o prêmio Game Changers – Mulheres Virando o Jogo no Esporte, que tinha a Nike entre seus patrocinadores.

O projeto não só ganhou o prêmio, mas fechou um contrato de patrocínio com a empresa esportiva que nunca mais teve fim – são já 13 anos de parceria. Nessa época também recebeu convites para palestrar no exterior, viajou para Portugal, Alemanha, Espanha e Argentina.

Hoje, o Vida Corrida tem sede própria com pista de atletismo e quadra. São 15 funcionários contratados, além dos voluntários. A estrutura tem sido possibilitada por outras fontes de financiamento de importantes organizações como o Instituto Boticário e a Fundação Itaú.

Neide conta com orgulho sobre as vitórias da ONG e de quem passou por ela. Um dos frutos mais recentes é o atleta brasileiro Júlio César Agripino, que conquistou ouro paralímpico em Dubai, e esteve com Neide no Vida Corrida.

Outro exemplo de reconhecimento de seu trabalho aconteceu em fevereiro do ano passado quando ela viajou para Nova York para um encontro com os atletas olímpicos patrocinados pela empresa esportiva.

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